Um corpo plasmático, como se fosse uma água
viva de algum esgoto aqui por perto, deixa a vista de todos uns ossos que boiam
dentro da bolha transparente, eles chocam-se com a fina pele quase liquefeita.
Sem muita coerência, uma enorme gama de conceitos imperfeitos, regras falsas e
pensamentos destrutivos escapam por um orifício mais parecido com um cú e
mancham de verde úmido o chão da sala, todos essas emanações pegajosas de uma
consciência putrefata enlodam o espaço ao redor do buraco enlarguecido do
sistema escretor da criatura. Vejo ela mirando com seu único olho as vidraças
da janela de onde entra uma luz amarela dos postes da rua, pesa em cima dela
uma enorme confusão de sensações do meio externo, o veludo do pano de dormir, o
som que brota de pequenas caixas de som, na realidade uma música triste que
povoa cada cômodo da casa, e faz o cérebro flutuante emitir mais de seu suco envenenado.
É madrugada, só as criaturas da escuridão perambulam nos corredores do
ambiente, baratas sem nem porque batem suas asas em voos rasantes, o olho
mexe-se temeroso, baratas são horríveis, ainda mais quando são voadoras, um
cheiro de azedo de tres-antonte invade o cú que também tem propriedades
olfativas, tudo isso ocorrendo dentro de um quarto caiado de branco gelo, onde
cinzas de cigarro formam uma fina camada entre o chão e os pés pretos de sujo
do cidadão, que não tem pálpebras para dormir. Cento e cinquenta reais é o
preço de sua eletricidade, para um celenterado como esse, pode-se dizer que
gasta muita energia. De súbito a bolha adquire forma humanoide, talvez porque
esteja com fome, levanta-se sobre duas pernas e caminha na escuridão até a
cozinha, abre a geladeira e pega mais uma lata de cerveja, seu cérebro vibra de
satisfação, como se fosse envolvido por uma densa pasta branca, parecido com
leite condensado. O sol está nascendo, vem ai um novo dia repleto de realidade,
da mais escrota que você pode imaginar, de um segundo para o outro ele toma uma
forma de homem, desses que andam por ai, risonhos e satisfeitos com a vida,
entra no chuveiro e lava as cinzas de seu corpo, afinal de contas tem que ir
trabalhar, aproveita para tirar o os restos de comida dos dentes cariados, tudo
tem que estar perfeito, vem ai o inferno, constituído muitas vezes por seres
desesperados em busca de alívio. Veste-se como sabe se vestir, e sai na rua
andando com seus fones de ouvido ignorando o sol que teima em queimar-lhe a
cutes.
O dia é
o mesmo de algum tempo atrás, pessoas com as quais tem que se relacionar, pois
a solidão afeta seu modo de pensar, passa por conflitos extremos, precisa das
pessoas, mas sente que não faz parte de grupo algum, ele é o que é, estranho em
seu mundo particular, desprovido de tranquilidade para interagir com o meio
social, pensamentos alegres povoam sua cabeça em direção a sua rotina de
trabalho, como se esperasse mais do que o dia possa lhe proporcionar, sempre
qualquer evento corriqueiro, como um olhar discreto de uma garota, ou um papo amigável
é o suficiente para fazê-lo feliz em qualquer momento, mas nunca esquece-se de
que há em seu ser uma bílis negra que o faz sofrer de angústias insuperáveis.
No seu trabalho concerta videogames, é mestre
nisso, tem a técnica de consertar de Ataris até os PS3’s da vida, diverte-se
muito com jogos de guerra, jogos bem feitos, é claro, gosta do enredo, do
argumento, da cenografia e claro da interatividade, tem para si que os games
são a 8ª arte. Perde-se muitas vezes em leituras difíceis e as vezes pensa que
os livros que lê não foram feitos para ele, as vezes acredita em Deus outras
não, detesta os moralistas, mas, no entanto, os trata muito bem. Tem projetos,
pode parecer incrível, mas os têm, quer se formar em astrologia, estuda para
isso, faz as provas, frequenta as aulas, com dificuldade, mas com boa vontade
aproxima-se das pessoas, tem conseguido se ajudar um pouco e quer que as coisas continuem assim, antes
que chegue a noite novamente, antes que se transforme em uma bolha sem forma
novamente, percorre caminhos que tem que percorrer, anda com as pessoas e as
vezes até arrisca beijá-las, mesmo sabendo que de algum modo isso não é muito
conveniente, pelo menos ainda não, é brasileiro e não costuma desistir, tem que
pegar o ônibus daqui a pouco, para chegar em casa, jantar um cará com arroz e
verduras.